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O Místico São Francisco de Assis

O Místico São Francisco de Assis

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Segundo Bernard McGinn, o elemento místico no cristianismo é aquela parte da crença e das práticas que preparam e conscientizam o indivíduo para aquilo que pode ser descrito como a presença imediata e direta de Deus, mas, para Paul Lachance, o misticismo pessoal de Francisco, parte tão proeminente de sua vida, até há pouco tempo vinha sendo estudado quase apenas a partir das biografias escritas sobre ele e das numerosas lendas criadas a seu respeito, com pouca atenção ao que ele mesmo expressara em seus escritos ou fora registrado a partir de suas próprias palavras - até onde é possível considerar a documentação a ele atribuída como autêntica.
Mesmo na tradição cristã, que o considera, obviamente, um santo, poucas vezes ele é descrito como um místico, e esse silêncio também se deve ao fato de que o estudo de sua experiência interior é extremamente difícil, pois ele poucas vezes falou diretamente no assunto e seus escritos dão apenas indicações indiretas.
Nisso, ele seguiu na contramão da tendência de seu tempo entre as outras Ordens religiosas, cuja literatura é muito mais abundante e explícita a esse respeito, e seu modo de ser estava muito mais relacionado com o dos cristãos primitivos, dos primeiros padres do deserto e dos patriarcas do oriente, para quem as revelações autobiográficas eram coisa estranha.
Um dos documentos que dão uma primeira ideia sobre sua visão sobre a divindade é a própria Regra Primitiva, o seu primeiro credo expresso em sua pureza, a qual, embora perdido seu original, crê-se que sobreviva em fragmentos dispersos entre vários manuscritos. Nesses trechos, Deus é mostrado como criador, redentor e salvador, fonte de todo o bem, e essência e objetivo último de todo ser, sendo "uno, sem início e sem fim, imutável, invisível, indescritível, inefável, incompreensível, insondável, bendito, digno de louvor, glorioso, exaltado nas alturas, sublime, altíssimo, gentil, amável, deleitável e totalmente desejável acima de tudo para sempre".
Sua atitude diante desse Deus "onipotente, santíssimo, altíssimo e supremo" era de completa sujeição e entrega, movidas por um desejo intenso de "amar, honrar, adorar, servir, louvar e bendizer, glorificar e exaltar, magnificar e agradecer", e essas cadeias de adjetivos entusiásticos são comuns em todos os seus escritos, e evidenciam que, para Francisco, Deus era, essencialmente, inapreensível e maravilhoso sob todos os aspectos, e não deixa de ser tocante o esforço que ele fazia para, pelo menos em parte, tentar descrever o que não podia ser descrito e menos ainda transmitido a outrem através de palavras.[65][66]
Sassetta: Êxtase de São Francisco, 1437-44. Coleção particular, Florença.
Na Epistola ad Fideles II (Segunda carta aos fiéis), ele enalteceu o sacramento da Eucaristia, pelo qual tinha uma especial veneração em virtude de a hóstia consagrada ser, segundo o dogma católico, o próprio corpo de Cristo transubstanciado, dado aos homens como uma lembrança perpétua de si mesmo e como dádiva de seu amor, e enfatizou não tanto a simples imitação da vida e paixão de Cristo, mas sim a importância da habitação do Deus vivo no interior de cada um através da descrição dos benefícios recebidos por aquele que obtém esse prêmio:[67][68]
"O Espírito do Senhor descansará sobre eles e fará neles habitação e morada. E serão filhos do Pai celeste, cujas obras fazem. E são esposas, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo. Somos esposas quando a alma fiel se une a Jesus Cristo através do Espírito Santo. Somos certamente irmãos, quando fazemos a vontade de seu Pai, que está no céu. Somos mães quando o carregamos em nossos corações e corpos através do amor e de uma consciência pura e sincera; damo-lo à luz através de sua santa maneira de operar, a qual deve brilhar diante dos outros como exemplo. Oh, quão glorioso, quão santo e portentoso é ter um Pai no céu! Oh! como é santo ter um esposo consolador, belo e admirável! Oh, quão santo e quão adorável, prazeroso, humilde, tranquilo, doce, amável e desejável acima de todas as coisas ter tal Irmão e Filho, que deu sua vida por suas ovelhas e orou ao Pai por nós dizendo: 'Pai santo, guarda em teu nome os que me deste' !"[69]
Mesmo dando essas descrições indiretas de suas experiências místicas, em nenhum de seus escritos ele as descreve objetivamente, e coube aos seus biógrafos fazerem extrapolações e descrições mais vívidas, cuja veracidade fica sempre sujeita ao imponderável da interpretação alheia. Entretanto, em vários pontos desses documentos posteriores, parece sobreviver, discernível através da ornamentação literária, um reflexo autêntico de como apareceram para ele suas visões e êxtases, ou como suportou os frequentes ataques de seres demoníacos, tais como se narra nos Fioretti, do qual um fragmento já foi exposto antes e que descreve o abismo que ele via entre a magnificência de Deus e sua pessoa miserável.
De qualquer forma, suas contemplações frequentemente revolviam em torno de trechos da Paixão que lia nos Evangelhos, e nesse sentido ele deu nascimento a uma nova forma de misticismo, o "misticismo Cristomimético" ou de imitação de Cristo, que Ewert Cousins chamou de "misticismo do evento histórico", que consiste na lembrança de um evento significativo do passado, na entrada em seu conteúdo dramático e na extração a partir dele de uma energia espiritual que eventualmente transporta o contemplador além do evento para a união com Deus. Sua própria estigmatização foi o corolário desse modo de meditar, e depois dele foi muito explorada por outros místicos como São Boaventura e Santa Clara, e mais uma multidão de outros nos séculos seguintes.[34][67]
Por fim, o outro aspecto importante a ser analisado no seu misticismo é sua intensa e amorosa relação com a natureza, relação que o tornou modernamente em um patrono dos animais e do meio ambiente. Este aspecto é um dos que mais acusam a originalidade de sua concepção de mundo em relação ao contexto de seu tempo.
Embora muitas características de seu misticismo não fossem novas, sendo encontradas nas vidas de vários líderes espirituais anteriores, outras eram inéditas até ali - sua relação direta, pessoal e familiar com todos os elementos constituintes da Criação, sua ênfase no caráter beneficente e não neutro ou ambivalente de todas as coisas e seres do mundo natural, sua exortação literal, e não alegórica, a animais, plantas e objetos inanimados para que servissem e louvassem a Deus, sua proposta de que se criasse legislação para que o povo alimentasse as aves selvagens no inverno no mesmo espírito em que davam esmolas aos pobres, e a inclusão de animais na celebração da missa.
Para Francisco, toda a Criação estava intimamente interconectada, e para ele era fácil transitar de um nível espiritual para outro e apreciar os múltiplos significados que extraía de sua leitura do "livro da natureza".[70]Eric Voegelin pensa que foi por descobrir e aceitar os mais baixos estratos da Criação como partes do mundo dotadas de significado e dignidade inerentes que ele se tornou uma das figuras mais importantes da história ocidental.[45]
Mosaico de Maria Ludgera Haberstroh na Igreja de Nossa Senhora, em Frankfurt, ilustrando o Cântico das Criaturas.
Essa forma de ver o mundo ficou expressa com clareza no seu Cântico ao irmão Sol, ou Cântico das Criaturas, onde chamou os ventos, o sol, a lua, o fogo e outros elementos do mundo natural de irmãos e convidava a todos celebrarem juntos a maravilha do mundo e servirem com alegria o seu autor. Neste poema, que, além de possuir altas qualidades estéticas, marcou o nascimento da literatura vernacular italiana, ele deu um testemunho ao mesmo tempo de sua visão integrada da realidade e do amor que sentia por ela, o que transparece ainda em diversos relatos posteriores de seus biógrafos e nas inúmeras histórias onde os animais estão presentes como coprotagonistas, sempre tratados como irmãos e não raro doutrinados como se fossem pessoas, aproximando-se dele espontaneamente mesmo quando selvagens e dando sinais de compreenderem suas palavras ao obedecerem suas instruções, e nas que contam como andava reverente sobre as rochas ou admirava as flores cheio de júbilo, ou quando defendeu as árvores recomendando aos lenhadores que não cortassem seus troncos muito embaixo, a fim de que elas pudessem renascer.[71][72]
Cântico também sintetiza o significado profundo e a função essencial da prece para Francisco, o de sempre glorificar a Deus e abençoar o mundo pela palavra e pelo trabalho. A natureza para ele era digna de apreço e admiração porque era uma expressão da divindade onipresente. Mas, para Leonardo Boff, essa admiração não foi a causa central que o levou a reordenar e purificar sua consciência, mas sim o resultado desse processo, e diz: "Quem quer que tente imitar romanticamente São Francisco em seu amor pela natureza sem passar pelo ascetismo, pela autonegação, pela penitência e pela cruz há de cair na mais profunda das ilusões".[73] Complementando essa ideia, numa leitura psicológica de sua vida, McMichaels vê sua experiência pessoal de um Deus imanente, numa época em que a divindade era concebida apenas como transcendente, como um auxílio para que o homem contemporâneo possa transformar positivamente sua própria concepção de mundo, uma concepção cada vez mais desafiada por novas descobertas acerca da natureza última da matéria, do tempo e do espaço, e do poder das forças do inconsciente, e a compara a um processo bem-sucedido de individuação por ter se baseado num senso de responsabilidade pessoal e social, por ter compreendido e aceitado a necessidade da luta, da dor e do esforço pelo aperfeiçoamento, e por dar origem a um corpo de valores coletivos integradores.[74]

O Cântico ao Irmão Sol, ou Cântico das Criaturas

Ver artigo principal: Cântico das Criaturas
Altíssimo, onipotente e bom Senhor, a ti subam os louvores, a glória e a honra e todas as bênçãos!
A ti somente, Altíssimo, eles são devidos, e nenhum homem é sequer digno de dizer teu nome.
Louvado sejas, Senhor meu, junto com todas tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol, que é o dia e nos dá a luz em teu nome.
Pois ele é belo e radioso com grande esplendor, e é teu símbolo, Altíssimo.
Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã lua e as estrelas, as quais formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão vento, e pelo ar, pelas nuvens e o céu claro, e por todos os tempos, pelos quais dás às tuas criaturas sustento.
Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão fogo, por cujo meio a noite alumias, ele que é formoso e alegre e robusto e forte.
Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã, nossa mãe, a terra, que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores, e também as ervas.
Louvado sejas, Senhor meu, por aqueles que perdoam por amor a ti e suportam enfermidades e atribulações.
Benditos aqueles que sustentam a paz, pois serão por ti, Altíssimo, coroados.
Louvado sejas, Senhor meu, por nossa irmã, a morte corpórea, da qual nenhum homem vivo pode fugir.
Pobres dos que morrem em pecado mortal! e benditos quem a morte encontrar conformes à tua santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal.
Louvai todos vós e bendizei o meu Senhor, e dai-lhe graças, e o servi com grande humildade![75]

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